O artigo abaixo estava programado para sair no Valor
Econômico. Eu mesmo cancelei a publicação pois, refletindo melhor, acho que o
leitor leigo vai ter dificuldade de compreender. Já que a página do Ilumina
está com defeito, para não jogar fora, envio para os colegas. Apreciaria se
lessem.
Quanto custa o déficit de energia elétrica?
Roberto Pereira D´Araujo [1]
Quanto você pagaria para que sua casa ou empresa não
sofresse um racionamento como o de 2001? Não se trata de apagões, mas de
medidas de contenção de consumo de longo prazo. É obvio que a resposta é
diferente para cada um e, no caso de empresa, depende da sua atividade. Se
ocorresse outra vez, apesar da felicidade de alguns geradores diesel, a
economia brasileira sofreria um grave prejuízo, pois a carência de energia,
logo se transformaria na falta de outros produtos.
No nosso confuso setor elétrico essa não é uma pergunta
válida apenas para avaliar efeitos póstumos ao fato. Você pode não acreditar,
mas a sua fatura de energia depende desse conceito. A cada mês, nas decisões de
operação do sistema, acionando ou desligando usinas térmicas, um misterioso e
ocluso valor, o Custo do Déficit (CD), influencia a sua despesa mensal. Apesar
desse atrelamento, parece ser um número divino, já que seu valor e seu papel
raramente são questionados.
Quando uma autoridade declara que há equilíbrio entre oferta
e demanda, ela sabe que há um suposto custo do déficit por trás dessa certeza.
Ironicamente, até o famoso mercado livre de energia é refém desse mítico número
através do Preço de liquidação de Diferenças (PLD).
Apesar da subjetividade e dificuldade de se obter essa
cifra, ela existe, é fixada pela ANEEL[2]
e está por trás de tudo no setor. Atualmente, vale R$ 3100/MWh ou R$
3,1/kWh. Sendo um valor único, pode parecer irrisório para quem consome poucos
kWh e soar como uma fortuna para setores eletrointensivos. Ele pode ser
interpretado como o “temor” do racionamento. Em 2001, esse valor era de R$
1.145/MWh[3], mas a origem do evento não está no
baixo valor. Faça o capital privado esperar uma privatização de usinas prontas,
acrescente uma seca média e a proibição de investimentos estatais e está feita
uma autêntica “convocação” ao racionamento.
O CD é um parâmetro exógeno, estimado por modelos
econométricos que relacionam o consumo de energia com os números de produção da
economia. Ora, sendo um modelo estatístico, é baseado no passado para definir
um número que influi no presente, mas também num futuro distante. Por mais
sofisticados que sejam os métodos utilizados, eles não escapam das incertezas
associadas aos seus parâmetros. Caso fossem considerados os níveis de
significância de cada etapa do cálculo, certamente o valor de R$ 3.100 perderia
a aura de certeza que tem hoje. Quanto mais alto o CD, maior o custo, porém, se
estiver subavaliado, maior o risco. O que é pior?
Proponho fazer umas contas com o CD de 2001. Não estou
recalculando o valor atual. Estou apenas comparando com mudanças ocorridas de
2001 até agora. Segundo a técnica vigente, quanto mais alto o CD, mais geração
térmica e até mais usinas podem ser necessárias. Por força do modelo comercial
adotado no Brasil, até o certificado de “garantia física”, o quantum de energia
que cada usina pode comercializar, deveria variar com o CD. Por exemplo, se
esse custo aumenta, a garantia de cada usina deveria decrescer, pois é preciso
ampliar a segurança, que está indiretamente conectada a esse valor mágico.
Potanto, será que os R$ 3.100 de hoje são satisfatórios?
Considerando apenas o IPCA do período, o CD de 2001 corresponderia hoje a R$
2587/MWh, ainda abaixo do valor atual. No entanto, bastaria essa correção
monetária?
O mercado de eletricidade sofreu uma mudança logo após 2002,
pois a curva de consumo voltou a crescer, mas sempre se mantendo 15% abaixo do
valor que teria ocorrido sem o racionamento. Se essa experiência deixou
algum benefício, com a ajuda da nossa cara tarifa, passamos a desperdiçar
menos. Portanto, pode-se interpretar que cada kWh consumido passou a ser mais
“essencial” do que era antes de 2001. Se dermos mais 15% de “importância” sobre
os R$ 2587, já teríamos R$ 2975.
De 2001 até 2012, a nossa capacidade de reservar energia nos
reservatórios caiu de sete meses e meio para cinco meses, dado o crescimento do
consumo. Uma queda de 33%. Isso significa que os kWh guardados nos nossos
reservatórios são muito mais importantes e “responsáveis” pela segurança do que
os kWh reservados no passado. Portanto, se levarmos essa mudança estrutural em
consideração já teríamos R$ 3.956/MWh.
Desde 2001, a tarifa média brasileira subiu 30% acima da
inflação. Portanto, se quiséssemos manter a proporção do CD com a tarifa, ele
poderia chegar a mais de R$ 5.000/MWh.
Apenas avaliando mudanças ocorridas no sistema de produção e
no mercado de energia, parece haver mais motivos para desconfiar desse místico
parâmetro. O valor de R$ 3.100/MWh pode ser uma versão piorada dos R$ 1.145/MWh
válidos em 2001. Tomara que essas contas sejam alvo de críticas, pois, no fundo
estamos falando da confiabilidade do sistema. É preciso deixar claro que não
estou promulgando outro valor específico ao invés dos exatos R$ 3.100. O que o
tento mostrar é que, sob o manto tecnicista, há fortes indícios de que o nosso
subjetivo critério de garantia pode não ser tão seguro como alardeado.
Toda essa complexidade é fruto da adoção do modelo mercantil
adaptado de sistemas térmicos. Por força desse mimetismo, uma usina brasileira
não vende a energia que produz. Comercializa um “certificado” que depende de
muitas variáveis, entre elas, o custo do déficit, incerto por sua própria
natureza. O mundo real nos mostra alguns sintomas preocupantes. Gastos
bilionários em usinas térmicas cobertos pelo tesouro precisariam de situações
hidrológicas bem piores que as atuais para serem justificáveis. O acoplamento a
um inseguro custo do déficit é apenas um dentre os muitos desafios que
deveríamos enfrentar. Ao invés de intervir pontualmente alterando regras que
afugentam os investimentos, já está passando o momento de reexaminar as
“certezas absolutas” do modelo vigente.
Roberto
Pereira d´Araujo
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