De: Adriano Benayon [mailto:abenayon.df@gmail.com]
Enviada em: quarta-feira, 11 de dezembro de 2013 23:29
Para: 'Hélio Socolik'
Assunto: Artigo: As Fontes da Dívida
Desta vez, segue o artigo completo. Há quinze dias fora só
com a primeira parte.
AS FONTES DA DÍVIDA PÚBLICA
Adriano Benayon * - 05.12.2013
Este artigo desenvolve pontos que abordei no Seminário
Internacional “O Sistema da Dívida na Conjuntura Nacional Internacional,
realizado em Brasília, de 11 a 13.11.2013.
2. Esse evento focou questões fundamentais, como as absurdas
taxas de juros que a União impõe a Estados e Municípios como credora deles,
exações semelhantes às que ela paga ao sistema financeiro, liderado pela
oligarquia financeira angloamericana.
3. Também revelou provas existentes no Brasil e em auditorias
levadas a efeito no Equador, na Argentina e na Islândia, reveladoras de que o
grosso das dívidas originais não está documentado, e de que elas se
multiplicaram através da capitalização de juros, taxas e comissões
injustificados.
4. Não obstante, até hoje, o Congresso Nacional não cumpriu a
determinação do art. 26 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias da CF de 1988: efetuar a auditoria da dívida pública.
5. Apresentei no telão documentos do Arquivo da
Constituinte que comprovam ter sido introduzido, por meio de fraude, no art.
166, § 3º, inciso II, da Constituição de 1988, o dispositivo que privilegia as
despesas de juros e amortizações da dívida no Orçamento da União.
6. Dito dispositivo não foi jamais discutido nos trabalhos da
Constituinte, mas. Entrou, de contrabando, depois de o texto constitucional ter
sido aprovado, sem ele, pelo Plenário, no 1º Turno. Isso permitiu que as
despesas com o serviço da dívida somassem – de 1988 ao presente - a colossal
quantia de R$ 10 trilhões em preços atualizados.
7. Essa causa da ruína da União, Estados e municípios resulta,
por sua vez, de duas outras fontes de sugação dos recursos do País: 1) a
entrega do mercado brasileiro às transnacionais; 2) a dependência financeira e
tecnológica nos investimentos na infra-estrutura e nas indústrias
básicas.
8. Essas duas fontes primordiais – começaram a implantar-se com
o golpe de Estado de agosto de 1954, regido pelos serviços secretos
angloamericanos. Elas causam os déficits nas transações correntes com o
exterior e acarretam a desindustrialização e o empobrecimento do País,
juntamente com o serviço da dívida pública delas derivado.
9. A entrega do mercado às transnacionais
causou danos irreversíveis ao País, e o teria feito mesmo que tivesse havido
contrapartidas. Mas foi ainda pior: o governo, além do mercado, outorgou-lhes
subsídios e vantagens de tal monta, que os prejuízos foram ainda mais profundos
e avassaladores.
10. As benesses ao capital estrangeiro deram-se a partir da
Instrução 113 da SUMOC (janeiro de 1955), que autorizou a CACEX (Carteira de
Comércio Exterior) a emitir licenças de importação para equipamentos
usados, sem cobertura cambial, permitindo, também, que o valor a
eles atribuído pelas transnacionais fosse registrado como investimento
estrangeiro em moeda.
11. Isso implicou suprimir a promissora indústria brasileira,
que progredira desde o início do século XX, porquanto deu às empresas
estrangeiras vantagem competitiva insuperável, proporcionando-lhes produzir
no Brasil com custo zero de capital e de tecnologia.
12. De fato, as transnacionais puderam trazer máquinas e
equipamentos usados, amortizados com as vendas nos países de origem e em outros
mercados de grandes dimensões, enquanto as indústrias nacionais teriam de pagar
pela importação de bens de capital e por tecnologia, ou investir por longos
anos para produzir seus próprios bens de capital.
13.
Além de doar o mercado brasileiro às transnacionais, através da licença para
trazer seus bens de capital usados, de valor real zero, e contabilizá-lo por
centenas de milhões dólares - base para transferir capital e lucros para
o exterior -, o governo militar-udenista (1954-55) agraciou as
transnacionais com a diferença entre a taxa de câmbio livre e a taxa
preferencial.
14.
A livre era mais que o dobro da preferencial. 1) as transnacionais
declaravam o valor que quisessem, em moeda estrangeira, dos bens de capital
importados; 2) convertiam-no à taxa livre; 3) ao transferir capital, “despesas”
e lucros para o exterior, a conversão era à taxa preferencial.
15.
Esse triplo favorecimento e mais os ganhos comerciais das transnacionais com
suas importações, mediante sobrepreços – também altíssimos após o início da
produção local - permitiu às transnacionais transferir fabulosos ganhos
para suas matrizes no exterior.
16.
Absurdamente, o Brasil entregou o que não deveria entregar por preço algum, e,
além disso, em vez de cobrar, pagou para entregar.
17.
JK foi entreguista tão radical, que não só manteve os indecentes
favorecimentos ao capital estrangeiro, mas reforçou-os a ponto de ser aberta
linha de crédito oficial para financiar as montadoras estrangeiras. Esse
benefício foi negado à empresa brasileira Romi, de Santa Bárbara do Oeste (SP),
que produziu 3.000 unidades da Romisetta, automóvel de um só banco, de 1956 a
1959.
18. Além disso, JK criou grupos executivos setoriais, como o
GEIA, da indústria automobilística, para facilitar os procedimentos de entrada
em funcionamento das montadoras estrangeiras e baixou a lei 3.244, de
14.08.1957, e o Decreto 42.820, de 16.12.1957, proporcionando mais vantagens
cambiais aos “investidores” estrangeiros.
19. Não admira que, ao
final do quinquênio de JK, o Brasil sofresse sua primeira crise de contas
externas desde o início dos anos 30. Vargas havia, em 1943, reduzido a dívida
externa do País a quase nada.
20.
As transferências das transnacionais são o principal fator dos elevados
déficits nas transações correntes com o exterior (US$ 80 bilhões nos últimos
doze meses), que colocam o Brasil no limiar de mais uma crise.
21.
Sobre os escandalosos sobrepreços, escreveu o senador Vasconcelos Torres
(1920/1982), p. 94 do livro “Automóveis de Ouro para um Povo Descalço”
(1977):
“No exercício de 1962
foi registrado, no balanço consolidado das onze empresas produtoras de
veículos automóveis e caminhões, lucro de 65% em relação ao capital social,
constituído por máquinas usadas, e aumentado posteriormente, com
incorporações de reservas e reavaliação dos ativos.”
22. Na. p. 95 desse livro, há tabela referente aos balanços de
1963, comparativa de preços de venda da fábrica à distribuidora com os preços
de venda do distribuidor ao público, para quatro montadoras, entre elas a
Volkswagen: “o preço nas distribuidoras era mais de três vezes o preço
na fábrica”, e os donos desta eram os mesmos daquelas ou tinham
participação naquelas.
23. Desde o final dos anos 60, as transnacionais foram cumuladas
por Delfim Neto com colossais subsídios à exportação, como isenções de IPI e
ICM, nas importações de seus bens de capital e insumos, e créditos
fiscais. Daí ao final dos anos 70, a dívida externa do País teve o
crescimento mais rápido de toda sua história.
24.
No livro “Globalização versus Desenvolvimento”, elenco quinze mecanismos
através dos quais as transnacionais transferem recursos para suas matrizes,
desde superfaturamento de importações e subfaturamento de exportações aos
pagamentos à matriz por “serviços” superfaturados e fictícios, afora a
remessa oficial de lucros.
25.
A entrega do mercado às transnacionais é a principal, mas não a única
fonte das transferências de recursos, dos déficits de conta corrente com o
exterior e, por conseguinte, da dívida externa, a qual deu origem à hoje enorme
dívida interna.
26.
Esses déficits e dívidas derivam também da realização, sob dependência
tecnológica dos investimentos públicos na infra-estrutura e
indústrias básicas, como a siderurgia, em pacotes fechados, caixas pretas,
usinas clés-en-main ou turnkey.
27.
Em lugar de proporcionar espaço a pequenas e médias empresas de capital
nacional, com capacidade de evolução tecnológica (engenharia e bens de
capital), os governos pós-1954 privilegiaram grandes projetos, reservando assim
o mercado para carteis transnacionais.
28.
Ademais, esses governos subordinaram sua política financeira aos bancos
privados - pois o Tesouro não emite a moeda nem comanda o crédito
através de bancos públicos. Assim, o subdesenvolvimento tecnológico foi
agravado, devido à carência financeira, decorrente da própria política, que
levou a buscar financiamento externo, liderado pelos bancos internacionais
multilaterais (Banco Mundial e BID).
29.
Confiada a essas instituições - dominadas pelas potências imperiais - a
direção das concorrências para as obras públicas, foram favorecidos os carteis
transnacionais produtores dos equipamentos e demais bens de capital. Além
disso, participavam do financiamento os bancos oficiais de exportação daquelas
potências, bem como seus bancos comerciais privados.
30.
Assim, ao contrário dos países que progrediram, a política econômica do Brasil
não deu chances às empresas nacionais de desenvolverem tecnologia e de ganhar
dimensão.
31.
Nos países onde houve desenvolvimento real, as compras governamentais foram
fundamentais para o surgimento de empresas de capital nacional dotadas de
tecnologias competitivas.
32.
Isso ocorreu no Brasil graças à Petrobrás, mas está decaindo com a quebra do
monopólio estatal do petróleo. Houve também nas telecomunicações e no setor
elétrico, mas acabou com as privatizações. Funcionou também em indústrias
ligadas à área militar, a qual foi, depois, enfraquecida por cortes no
investimento público e pela desnacionalização.
33.
O financiamento dos bancos públicos fortaleceu o capital nacional, naqueles
aqueles países, inclusive os de desenvolvimento recente, como Coreia do
Sul, Taiwan e China. Enquanto isso, no Brasil, o BNDES e os demais bancos
estatais, há muito, deixaram de priorizar as empresas nacionais e oferecem
empréstimos favorecidos a empresas transnacionais.
34.
As instituições brasileiras desmoronaram a partir da crise da dívida de
1982, e esta decorreu: 1) da entrega do mercado às transnacionais, que se
assenhorearam da produção industrial no País, inclusive bens de capital; 2) de
os investimentos públicos terem utilizado equipamento importado e/ou produzido
localmente por empresas estrangeiras, em grau muito maior que o devido à
incapacidade de oferta adequada por empresas de capital nacional.
35. A
dependência tecnológica foi agravada em função da entrega do mercado às transnacionais.
Além disso: a) as empresas nacionais foram ter-se asfixiadas pelas políticas
restritivas aos investimentos públicos e ao crédito - tornado proibitivo
sob o governo de 1964 a 1966; b) o governo recorreu, em grau crescente, aos
empréstimos e financiamentos estrangeiros, em face do crescimento da própria
dívida. Esse recurso era, de início, desnecessário, pois o Estado poderia
emitir moeda e crédito.
36.
Apesar de os choques do petróleo terem contribuído para a explosão da dívida
externa nos anos 70 – pois o Brasil era importador líquido - isso não foi
fator decisivo. Não o foi tampouco a brutal elevação dos juros nos EUA em
agosto de 1979, quando, de resto, a situação das contas externas brasileiras já
se mostrava insustentável.
37.
Outros países com ainda maior coeficiente de importação de petróleo - como
Alemanha, Itália, França, Japão, Coreia - não caíram, em 1982, na mesma
situação de Brasil, Argentina e México, caracterizados pelo modelo dependente e
pela ocupação de setores estratégicos de suas economias pelos investimentos
estrangeiros diretos.
38.
Desde 1982, o governo pôs-se de joelhos diante dos bancos comerciais e dos
governos das potências hegemônicas, a pretexto da crise da dívida externa,
oficializando a submissão ao FMI e Banco Mundial e aos planos dos banqueiros
(Baker e Brady - 1983-1987).
39.
Assim, a desnacionalização e a primitivização tecnológica, consequências
das políticas adotadas desde o final de 1954 tornaram-se ainda mais intensas. A
condição colonial ficou evidente na Constituição de 1988, não só através do
dispositivo fraudulentamente inserido no art. 166 (Vide § 5 acima) para
privilegiar as despesas com o serviço da dívida, mas também de outras normas,
como o art. 164.
40. Esse determina que
a competência da União para emitir moeda seja exercida exclusivamente pelo
Banco Central (BACEN), e o proíbe de conceder, direta ou
indiretamente, empréstimos ao Tesouro Nacional e a qualquer órgão ou entidade
que não seja instituição financeira. Dispõe, ademais, que os saldos de caixa da
União serão depositados no BACEN.
41. Ora, o Tesouro,
que deveria ser o emissor da moeda e financiar parte dos investimentos públicos
desse modo, não pode fazê-lo. Portanto, a Constituição força o Tesouro a
endividar-se, emitindo títulos públicos. Com isso assegura lucros absurdos aos
bancos privados, os quais recebem recursos do BACEN, a baixo custo, e os
aplicam em títulos do Tesouro, que pagam juros elevadíssimos.
42. Esses juros
são fixados pelo COPOM (Comitê de Política Monetária), controlado pelo BACEN,
um feudo dos bancos privados. Essa é mais uma fonte de enriquecimento sem
causa, como a decorrente do privilégio de criar dinheiro do nada, fazendo
empréstimos em múltiplo dos depósitos.
43. Banco é uma
concessão que o Estado só deveria dar à mãe dele, a sociedade: é uma concessão
que só tem sentido se for estatal e exercer suas funções em prol da sociedade.
No Brasil esta não poderia estar sendo mais traída, pois aqui são praticadas
taxas de juros altíssimas sem qualquer razão, afora a mistificação.
44. Chegou-se a taxas
básicas para títulos públicos acima de 40%, inclusive após o Plano Real,
falsamente apresentado como saneador da inflação. E, de resto, para reduzir a
inflação faz mais sentido baixar que elevar as taxas de juros.
45. A taxa de 2% aa.
capitalizada mensalmente por 30 anos não faz dobrar um saldo devedor. A de 15%
faz que o saldo seja multiplicado por 66,3.
46. O Brasil já estava
subjugado em 1988, e depois o opróbrio intensificou-se a cada eleição.
Veio a liquidação de estatais estratégicas; a lei da desestatização; os planos
“antiinflacionários”, repressores da economia produtiva; dezenas de emendas
constitucionais contrárias ao País, como a que acabou com qualquer
possibilidade de distinção entre empresa de capital nacional e empresa de
capital estrangeiro.
47. Mais: as
infinitamente danosas privatizações; abertura das importações, sem
contrapartida; isenção de impostos e contribuições à exportação de produtos
primários; adoção do estatuto da OMC e da lei de propriedade industrial,
que afunda o País no apartheid tecnológico; lei 9.478/1997: entrega do
petróleo às transnacionais; lei de “responsabilidade” fiscal: prioridade
absoluta aos gastos com a dívida pública; demissão do Estado com a
criação das agências e as concessões; parcerias público-privadas: o Estado dá
dinheiro, financia e garante lucro sem risco aos concentradores privados;
intensificação dos subsídios e privilégios aos “investimentos” diretos
estrangeiros.
48. Em resumo,
aumenta-se a dose das políticas de desnacionalização da economia, causadoras
originárias da dívida pública. A desnacionalização gera mais dívida, e esta
aprofunda o rombo.
49. Fixam-se taxas de
juros altíssimas sobre o montante enorme dessa dívida. Desse modo, mesmo sugando
os contribuintes, com tributos, o Estado não consegue receitas suficientes para
pagar a conta dos juros.
50. Isso demonstra que
essas taxas não têm outro sentido senão acarretar o crescimento sustentado da
dívida, por meio da capitalização de juros. Desnecessário reiterar o
quanto tais políticas são destrutivas.
51. Além de escorchada
pela carga tributária, a sociedade o é adicionalmente pelos preços dos
produtos fornecidos por oligopólios e carteis transnacionais.
52. Ela sofre, pois,
de múltiplos ataques que corroem a renda disponível dos cidadãos: 1) os preços
abusivos dos produtos que se usa ou consome; 2) impostos e contribuições
fiscais acima da capacidade contributiva; 3) crescente insuficiência dos
investimentos públicos, decorrente de quase metade das despesas serem torradas
com o improdutivo serviço da dívida, bem como de desonerações fiscais e
subsídios em favor do sistema financeiro e dos concentradores em geral.
53. Desgastam ainda
mais a renda social e a qualidade de vida das pessoas: 1) a lastimável
condição das infra-estruturas, especialmente a de transportes e a de energia;
2) a baixa e decadente qualidade da educação e da saúde, inclusive saneamento e
prevenção; 3) a carência de empregos, inclusive dos de produtividade elevada e
bem remunerados.
* - Adriano
Benayon é doutor em economia e autor do livro Globalização versus
Desenvolvimento.